sexta-feira, 31 de agosto de 2018

A ESCOLHA DO GOVERNANTE


O Brasil é uma democracia, cuja principal característica é a escolha dos governantes pelo sufrágio universal. Detenhamo-nos, portanto, em algumas características do “povo”, soberano no regime democrático.
Segundo o sociólogo José de Souza Martins, a sociedade brasileira foi historicamente edificada sobre escravidões. A abolição da escravatura indígena ocorreu em 1755 e a da escravidão negra, em 1888. Esta pesada herança contribuiu para a mentalidade milenarista (misticismo) do povo brasileiro, “a mais forte expressão do nosso atraso político e social. ”
 Explica, parcialmente, a escandalosa repartição de renda no país e o enorme contingente de pobres.
Em 1985, finda a ditadura, uma emenda constitucional assegurou aos analfabetos o direito de votar.  Entre 2007 e 2008, o número absoluto de analfabetos adultos aumentou e chegou a 14,247 milhões.
Vamos procurar num pensador da Antiguidade a solução do enigma enunciado no título. Trata-se de um diálogo de Platão contido no capítulo VI da “República”. Apresentaremos nossa interpretação simultaneamente.
Interrogado por um dos participantes do diálogo sobre a razão de serem os Estados tão mal administrados, Platão responde por uma imagem. Pede que se imagine uma situação hipotética, ocorrendo a bordo de um navio.
“-O patrão, em tamanho e em força, ultrapassa todos os membros da equipagem, mas é um pouco surdo, um pouco míope e tem, em matéria da navegação, conhecimentos tão curtos como sua vista.”
Deduzimos que, para Platão, o patrão representa o povo, soberano na democracia. O diálogo prossegue:
“-Os marinheiros disputam entre si o leme: cada um acha que é seu direito tê-lo, embora não conheça a arte, e que não possa dizer sob qual mestre, nem quando a aprendeu. Mais ainda, pretendem que não seja uma arte que se aprenda(...)”
Para Platão, a política constitui uma forma de ciência, que implica numa aprendizagem. 
“-Sem cessar em torno do patrão, insistem em seus pedidos e usam de todos os meios para que lhes confie o leme. ”
Os candidatos usam de todos os truques para serem eleitos: compra de votos, curral eleitoral, demagogia, populismo, marketing, etc.
“-Tornados mestres do navio, apropriam-se de tudo o que contém e, bebendo e festejando, navegam como podem navegar gente deste tipo”.
A referência é evidente à apropriação dos bens públicos, à corrupção, no mais puro modo patrimonialista. Quanto ao desastre para onde o Estado é levado, fica subentendido o naufrágio.
“-Por outro lado, quanto ao verdadeiro piloto, nem duvidam que deva estudar o tempo, as estações, o céu, os astros e os ventos, se quiser realmente tornar-se capaz de conduzir um navio; quanto à maneira de comandar (...), não acreditam que seja possível aprendê-la, pelo estudo e pela prática, juntamente com a arte de pilotar. ”
Fica claro que, além das qualidades de personalidade e de liderança (“o Rei-filósofo”), o candidato deve ter aprendido a governar.

quinta-feira, 30 de agosto de 2018

O FEMINICÍDIO


O feminicídio é o misógino assassinato de mulheres por homens ou “o assassinato de mulheres por homens porque são mulheres” (Diana Russel). É perpetrado por homens machistas, possessivos, ciumentos e violentos. As motivações são o ódio, os ciúmes, o despeito, o sadismo. É comum o sujeito estar sob o efeito de drogas ou álcool quando passa ao ato.
Paradoxalmente, o lugar mais perigoso para a mulher é o lar, onde convive com o homem, seja marido, amante, pai ou irmão.
Este crime misógino é uma forma de violência sexual, implicando o desejo de poder, de domínio e de controle do homem numa sociedade patriarcal. O patriarcalismo tem origens muito remotas. Teria começado em tempos imemoriais quando as mulheres, naturalmente retraídas e esquivas, eram pegas à força pelos homens -mais fortes-, e arrastadas para dentro das cavernas. Mantinham-nas prisioneiras, para servir-se delas, como companhia permanente de suas vidas. Assim, constituíram-se as famílias, que governavam como “ciclópicos impérios” sobre suas mulheres e seus filhos (Vico). Isto implicava a superioridade de gênero e o sentimento de posse (gerador de ciúmes).
Os homens têm tendência a considerar as mulheres como “propriedade” sexual e reprodutiva. O “título” de posse é semelhante à de um bem material, terreno ou moradia por exemplo. Historicamente, os proprietários de escravos, servos, mulheres e crianças podiam desfrutar de seus “bens” como se lhes conviesse.  
O feminicídio é principalmente uma manifestação de possessividade e de ciúme. É desencadeado por uma ameaça de separação ou de abandono do lar. Na maioria das vezes, a esposa ou amante tem outro relacionamento. Isto pode precipitar um acesso de fúria narcísica, motivado por uma necessidade de vingança insaciável.
Esta conduta revela que a dominação masculina é também uma armadilha, condicionando-o a afirmar cegamente sua virilidade. Torna-se uma questão de honra, que o “obriga” a agir, regido pelo seu inconsciente falonarcísico. “A ordem social funciona como uma imensa máquina simbólica, tendendo a ratificar a dominação masculina sobre a qual é fundada. A virilidade, entendida como capacidade reprodutiva, sexual e social, mas também como predisposição ao combate e ao exercício da violência (principalmente na vingança), é antes de tudo uma carga” (Bourdieu).
Este sociólogo desvela a dimensão política do casamento (uma das primeiras instituições da cultura), cujo interesse masculino seria a acumulação de capital simbólico e social (honra). As mulheres seriam objetos ou bens simbólicos (dons) das trocas no mercado matrimonial.  
Portanto, a maioria dos casos de feminicídio está relacionada com o ciúme do homem. Este afeto é um derivado da disposição masculina de posse da mulher com quem tem um relacionamento íntimo. A influência da tradição patriarcal rege o inconsciente androcêntrico.
“Se não vai viver comigo, não irá viver”, sentenciou um feminicida.




terça-feira, 28 de agosto de 2018

A LÓGICA DA CASTA POLÍTICA


O Leviatã, de Hobbes, é o maior tratado de pensamento político em língua inglesa. Em sua teoria, o filósofo postula: “...em primeiro lugar, coloco como uma inclinação geral de toda espécie humana, um perpétuo e insaciável desejo de poder pelo poder, que cessa somente com a Morte”. Esta voracidade espontânea e infinita do homem o leva a desejar o domínio absoluto. A busca irracional pelo poder é baseada no prazer que o homem tira da sensação de sua própria onipotência, isto é, na vaidade. Isto o impulsiona no esforço pelas posições honoríficas, no reconhecimento de sua superioridade sobre os outros, na ambição, no orgulho e na paixão pela fama. O Estado é comparado ao Leviatã, porque ele é “o Rei de todas as crianças da soberba”.
O Estado é a mais extensa vontade de poder, uma efetiva formação de domínio. Todas as sociedades apresentam-se divididas em dois segmentos: uma camada superior – composta pelas elites governante e não-governante-, que domina a imensa maioria das pessoas. A elite política detém o controle do Estado, das finanças, tem o monopólio da violência e desfruta das vantagens que o poder proporciona, enquanto a maioria governada fornece recursos privilegiados para a minoria, além dos meios essenciais para a máquina burocrática funcionar.

 Toda sociedade é caracterizada pela natureza de suas elites, principalmente de sua elite governante. Há uma distribuição muito desigual dos bens no conjunto social e uma distribuição mais desigual ainda do poder, da influência, do prestígio, associados ao monopólio da política. É principalmente através da riqueza que o princípio da soberania do povo sofre um curto-circuito, é ludibriado. A riqueza produz poder político, assim como o poder político tem gerado riqueza.

Por estes vários privilégios, a elite política tem o viés de tornar-se familiar. Pelas mesmas razões, é submetida ao princípio da inércia: tem a tendência a permanecer no lugar, preservando o mesmo estado de coisas. Esta estabilidade entra em contradição com o princípio da alternância democrática.

 A inclinação da elite política para monopolizar o poder e se perpetuar é ameaçada pela insurgência de novas forças. A inércia levou a atual minoria a se fechar, tornar-se rígida, petrificada, além de improdutiva. Procura imobilizar o surgimento de uma renovação política. Por outro lado, a centralidade da luta pela permanência no poder desta casta, a impossibilita de governar adequadamente o país. Está obcecada por sua sobrevivência política.

A estrutura de dominação do tipo patrimonialista do Estado brasileiro resistiu a todas as transformações nos séculos de sua História. A carapaça administrativa de instituições anacrônicas frustra o desabrochar das potencialidades reprimidas. O patronato político exerce o poder sobre a nação como uma autocracia de caráter arbitrário. “ A comunidade política conduz, comanda, supervisiona os negócios, como negócios privados seus na origem, como negócios públicos depois, em linhas que se demarcam gradualmente. O súdito, a sociedade, se compreendem no âmbito de um aparelhamento a explorar, a manipular, a tosquiar nos casos extremos” (Raymundo Faoro).
Os 28.125 candidatos aos cargos em disputa nas eleições de 2018 no Brasil declararam à Justiça Eleitoral possuir R$ 304 milhões, em dinheiro vivo (segundo tabulação do “Estado de São Paulo”, de 22 de agosto de 2018). O total de bens declarados chegou a R$ 25,2 bilhões. Em contraste, existem 14 milhões de cidadãos desempregados.

Ocorre uma tal divisão entre os dois segmentos do conjunto social que parecem existir em realidades paralelas. Nem a função primordial do poder público, a de assegurar a vida e a propriedade das pessoas, é cumprida. Em consequência, a sociedade entrou num estado de anomia: existem leis, normas, mas elas não são respeitadas. Há um total descolamento dos três poderes da República da realidade brutal em que vive a população. O resultado é a perda de confiança geral e a falta de representatividade, legitimidade, das autoridades. A crise moral, revelada pelo Mensalão e pela Operação Lava-Jato, provocou um sentimento de repulsa, de revolta, de descrédito, contra os que monopolizam o poder de forma tão vil.

Convém lembrar que a Ação Penal 470, apelidada de mensalão, foi a primeira grande rachadura no imenso esquema de corrupção sistêmica do país. Esta é a moeda de troca entre o público e o privado, mecanismo essencial do patrimonialismo ou capitalismo de compadrio. As principais causas da corrupção são o presidencialismo de coalizão e a impunidade.
Coloquemos em foco três “brechas” sociais recentes: as jornadas de junho de 2013, as manifestações de protesto de 2015 e a greve (motim) dos caminhoneiros de maio 2018. A rebelião das ruas adquiriu forma contra o obsoletismo de um sistema político apodrecido (os três poderes, mais a elite da burocracia) que capturou o Estado.
Este é o conflito central da sociedade brasileira neste início do século XXI, sob o impacto da globalização. O antagonismo entre uma sociedade civil submetida a uma carga tributária de 35% do PIB sob dominação de um Estado patrimonialista, corrupto, irracional, ineficiente e hipertrofiado.
Diante de tanta inconformidade, insurreição mesmo, como reagiu a casta política, o “establishment”?
Só fez acentuar sua couraça pétrea num reflexo de defesa de seus privilégios. Boiando sobre a sociedade civil, aí pretende ficar gozando do excedente que extrai das forças produtivas da nação.
Para a perpetuação no poder, criou um mecanismo perverso: um fundo eleitoral milionário, com verbas públicas, destinado aos partidos políticos (entes privados). Ou seja, congelou o que a multidão tinha posto em movimento.
Este é o cenário para as eleições de 2018. O povo ficou “a ver navios” e os “mortos-vivos” estão mais vivos do que nunca.