domingo, 9 de setembro de 2018

A MULTIDÃO VERSUS O ESTADO


Coloquemos em foco três fatos sociais recentes: as jornadas de junho de 2013, as manifestações de protesto de 2015 e a greve (motim) dos caminhoneiros de 2018.
Procuremos analisa-los para encontrar seu sentido e o elo comum entre eles. Neles, indivíduos isolados, espalhados numa constelação difusa na sociedade, foram aglutinados numa multidão (Negri), através das redes sociais (pontos de link). O que levou esta massa a virar consciência coletiva da sociedade? O que mobilizou indivíduos, cuidando de seus próprios negócios, a se voltarem para o coletivo? Claro que no caso dos caminhoneiros estava posta uma reivindicação setorial no desencadeamento do movimento, mas depois houve articulação com a esfera pública. É evidente que, no caso das jornadas de junho, a majoração em 20 centavos no preço do bilhete de ônibus na cidade de São Paulo foi apenas um estopim.
O que estava represado em cada um que forçou uma saída, expressando-se num grito de indignação fusionado?
O desespero diante uma realidade insuportável, intolerável: viver numa sociedade que repete uma segunda barbárie, pior que a primeira da época da colonização. A violência é seu ferro. A nação brasileira encontra-se num processo de regressão, de dissolução do grau de civilização que havia alcançado.
 Brotou uma necessidade imperiosa de agir, de alguma forma, para modificar este arranjo teratológico. A forma foram as manifestações multitudinárias, cujo ícone era ser “sem partido”, ou a frase “vocês não me representam”, sintetizando a crise de representação.
O que se expressava era a revolta contra um sistema político apodrecido (os três poderes, mais a elite da burocracia) que capturou o Estado.
Mosca afirma que, em todas as sociedades, existem duas classes de pessoas. A primeira, minoritária, monopoliza o poder e desfruta das vantagens que proporciona, enquanto a segunda, a maioria, é dirigida e controlada e supre a outra com meios privilegiados de subsistência.
Este é o conflito central da sociedade brasileira neste início do século XXI, sob o impacto da globalização. O antagonismo entre uma sociedade civil submetida a uma carga tributária de 35% do PIB sob dominação de um Estado patrimonialista, corrupto, ineficiente, irracional e hipertrofiado.
E diante de tanta inconformidade, insurreição mesmo, como reagiu a classe política, o establishment?
Só fez acentuar sua couraça pétrea num reflexo de defesa de seus privilégios. Boiando sobre a sociedade civil, aí pretende ficar gozando do excedente que extrai das forças produtivas da nação.
Para a perpetuação no poder, criou um mecanismo perverso: um fundo eleitoral milionário, com verbas públicas, destinado aos partidos políticos (entes privados). Ou seja, congelou o que a multidão tinha posto em movimento.
Este é o cenário para as eleições de 2018. A multidão ficou “a ver navios” e os “mortos-vivos” estão mais vivos do que nunca.
 É uma mistura explosiva.

sexta-feira, 7 de setembro de 2018

IDOLATRIA


 A liderança carismática depende da crença disseminada na existência de capacidades extraordinárias ou sobrenaturais.  Max Weber define carisma como “certa qualidade de um indivíduo (personalidade), em virtude da qual é diferenciado das pessoas comuns e tratado como dotado de qualidades sobrenaturais, sobre-humanas ou, pelo menos, excepcionais”. É o reconhecimento por parte dos crentes que o consagra.
Descrevamos, preliminarmente, o contexto de nossa análise psicológica do carisma de Lula. Em nossa percepção, o Estado brasileiro conserva características patrimonialistas, a sociedade está em processo de ruptura com o tradicionalismo (pelo efeito do caráter revolucionário do carisma) e o povo é naturalmente religioso.
Procuremos discernir as condições que tornaram possível a aparição deste chefe político divinizado brasileiro e os sentimentos religiosos e políticos que o impulsionaram ao poder (e o mantém, embora como sujeito oculto).
Um líder sindical metalúrgico, dotado de carisma político, conduziu greves operárias contra o regime militar, tendo sido preso na época (1980). Nasceu, assim, o herói Lula.  Até aqui, nossa narrativa descreve um sindicalista que, em seguida, se transforma em líder de um partido político socialdemocrata.  
Neste ponto de nossa análise, intervém uma operação simbólica de grande relevância histórica. O povo, em seu modo de pensar, experimentou uma conversão interna e investiu (projetou) o líder político com atributos messiânicos. Na fé popular, começou a encarnar o salvador, o homem enviado por Deus – mito que existiu desde sempre.
Como isto foi possível?
A explicação é que o herói proletário se apropriou da “opção preferencial dos pobres” - ideologia da Teologia da Libertação-, e passou a interpretar um carisma semelhante ao profético. “Deus não elege um pernambucano de Caetés todo ano para presidente da República. Não elege um metalúrgico todo ano para presidente da República” (discurso em 25/1/05). Favoreceu-se de uma herança cultural arcaica, submersa no inconsciente coletivo do povo brasileiro.  
E qual foi a dádiva principal para assegurar o bem-estar daqueles que se entregaram com uma fé cega ao herói doravante divinizado?  Foi o auxílio do governo através do programa Bolsa Família. As estatísticas oficiais contabilizam mais de 25% da população beneficiados pelo Bolsa Família.
 A pergunta, inevitável, é a seguinte: se o líder carismático pedir o voto destes beneficiários do Bolsa Família para um(a) político(a) indicado(a) por ele, não é lógico supor que estarão na obrigação de corresponder?

quarta-feira, 5 de setembro de 2018

A SOCIEDADE BRASILEIRA EM TRANSIÇÃO


Os altos índices de criminalidade e de estupros, a disseminação das drogas, a violência nas manifestações de rua, a corrupção disseminada, para não citar que alguns fenômenos sociais patológicos, indicam que a sociedade brasileira está numa era de transição.
                Para onde?
Maquiavel, em sua História de Florença, comparando-a com eventos passados, concluiu que as sociedades mal ordenadas, injustas, oscilam entre a servidão e a licenciosidade.  A servidão é sinônimo de Ditadura, o pior dos regimes. Aos cidadãos, transformados em servos, é imposto um governo que impera baseado na força e não nas leis. A licenciosidade, a anarquia, é caracterizada pelo regime no qual os cidadãos não respeitam as leis, aspirando por uma liberdade sem qualquer restrição. É o caldo de cultura ideal para os demagogos, isto é, os chefes de partidos populares (origem do termo na Grécia Antiga), mestres no uso da retórica, na magia das palavras, para iludir as massas.
 Tal parece ser o caso do Brasil: transitou da Ditadura para a forma mais degenerada de Democracia, a conduzida por demagogos (Aristóteles). Nesta condição, instalou-se a licenciosidade, manifestada pelos fenômenos apontados acima. Portanto, seguindo o raciocínio do sábio renascentista, a sociedade brasileira estaria em transição para uma Tirania. Qual forma de Tirania? A resposta de Platão não pode ser mais clara: um “salvador da pátria” seria entronizado. Assim, a forma de Tirania seria a do governo de um Só, nos moldes de Mussolini ou Salazar. Na Roma Antiga, foram inúmeros os golpes dos legionários ou da guarda pretoriana. Já tivemos um precedente recente. Haveria condições de recidiva? No imaginário da classe média superior existe o desejo. O trauma pelo fracasso da experiência dos guardiões armados do Estado estaria superado ou “gato escaldado tem medo de água fria”?
Em função do “background” nacional, julgamos que estes são os cenários mais prováveis: um longo período de licenciosidade, com o aprofundamento da barbárie, da anomia, beirando a “guerra de todos contra todos” (Hobbes) ou a Tirania, de um Só ou de uma burocracia (ou uma mescla dos dois).
Atualmente, a hegemonia ideológica da elite governante brasileira pode ser
caracterizada pelo modelo cristão-marxista. Estão embutidos nestas duas visões de mundo, de configuração totalizante, os “ovos de serpente” da licenciosidade e o da Ditadura (“do proletariado” /do partido/do culto de personalidade).
                A ideologia cristã - desconsiderando as questões relacionadas à fé-, seria a de “perdedores”, na avaliação de valores do filósofo alemão Nietsche. Privilegiaria aos "pobres", aos "enfermos" e aos "pecadores". Uma vez delineado este arcabouço teórico de caráter ideológico, agora estamos aptos para ilustrá-lo na prática.

        O “carro-chefe” dos programas do governo é o famoso “Bolsa-Família”, direcionado aos “pobres”. Isto se traduz na postura assistencialista oficial de transferência de renda para as camadas mais baixas da escala social-iniciada pelo “Fome-Zero", de iniciativa da Igreja. No discurso religioso trata-se do sinal do maná, “o verdadeiro pão que vem do céu”(6,32-33). O antropólogo francês Marcel Mauss escreveu um ensaio sobre a dádiva, em que analisa as mais antigas relações de troca nas sociedades. Um dos exemplos que cita é o do “dom” (potlatch), que quer dizer, essencialmente, dádiva e alimento. Estabelece-se uma forma arcaica de contrato, em que o presente recebido é obrigatoriamente retribuído. A dádiva implica necessariamente a instalação de crédito. O “dom” é mais que uma troca: é um fenômeno religioso, mitológico e xamanístico. Há necessidade de caracterizar, ainda mais,  uma das principais virtudes cristãs,  a da caridade? (“quem dá aos pobres empresta a...”).
A ideologia cristã tem grande influência sobre a aplicação do código penal da sociedade. A postura diante do criminoso, do fora-da-lei, do “marginal”, é a do excluído, do explorado. Estimula uma atitude tíbia diante do crime, escorada na
"recuperação" do malfeitor, sinônimo de "pecador", merecedor da misericórdia e do
perdão. O menor pode cometer todas as infrações "de maior", no entanto, a elite governante recusa-se a rever a maioridade penal. Há uma epidemia de ódio, de crime e de violência no país e os governantes não ousam contrariar a ideologia do “amor  ao inimigo”...
Quanto aos "enfermos" aí está o Sistema Único de Saúde, garantindo a prestação da assistência à saúde de forma universal e igualitária. A ideologia cristã marcou o advento da igualdade entre os homens, o fim da escravidão na Antiguidade. O programa "Mais Médicos", procura estender este direito até os mais distantes recônditos do país. Os médicos foram, e não por acaso,  importados da Ilha Socialista.
Neste ponto, torna-se possível estabelecer uma ponte com a outra ideologia dominante da casta dirigente, a marxista.
A curiosa coincidência é que o marxismo também pode ser considerado uma crença, semelhante a uma religião. Citemos a interpretação de Karl Löwith, em “Significado e Fim da História”: “É somente na consciência ‘ideológica’ de Marx que toda história é a história das lutas de classe, enquanto a real força condutora por detrás desta concepção é um transparente messianismo que tem sua raiz inconsciente no próprio ser de Marx, mesmo em sua raça. Ele era um Judeu de estatura do Velho Testamento, embora um Judeu emancipado do século dezenove que era fortemente antirreligioso e mesmo antissemita. É o velho messianismo e profetismo judaico -inalterado por dois mil anos de história econômica de trabalho manual  à indústria de larga escala- e a insistência judaica na absoluta retidão que explicam a base idealista do materialismo de Marx. Embora pervertido em previsão secular o Manifesto Comunista ainda conserva as características básicas da fé messiânica: ‘ a certeza das coisas aguardadas’..o proletariado como povo eleito que conduz à redenção”.

Pode-se, porém, imaginar um cenário mais “róseo”: nos interstícios institucionais e na falência da ordem da sociedade atual pode estar em gestação a criação de um “admirável mundo novo”. Estabeleçamos que já exista alhures: nos países nórdicos da Europa (Suécia, Noruega, Dinamarca, Finlândia). São modelos híbridos, associando o Estado e o Mercado, numa combinação mais harmoniosa, temperada.
O grande historiador Ferdinand Braudel dizia que a vida nos países emergentes (para usar o vocabulário atual) era um Purgatório ou um Inferno.
 Suponhamos que estejamos numa encruzilhada: o Céu ou o Inferno será o Destino brasileiro?